terça-feira, janeiro 27, 2009

Na maré de Calcanhoto


Tirei a hora para desfrutar minha solidão.
Indelével, inefável, infalível solidão.

saia dessa vida de migalhas
desses homens que te tratam
como um vento que passou


No último domingo, pela primeira vez fui assistir a um show da Adriana Calcanhoto, cantora e compositora que admiro, mas não conheço bem. Ela passou novamente por aqui em turnê de seu último álbum - Maré. Meio que pensei em desistir de última hora, mas tinha de ir entregar os convites de uma colega, portanto não teve jeito. Final de domingo, sozinha, fui lá. Sentei no meio da multidão e nem percebi quando fui tomada pelo encanto.

Ano passado, de presente de aniversário, ganhei de minha mãe o Maré. Depois de ler entusiasmados comentários na imprensa, me decepcionei com o disco. Achei mais do mesmo da Adriana Calcanhoto. Ouvi seguidamente umas duas, três vezes tentando gostar, não consegui. Fiquei na minha e guardei o cd meio esquecido. Até que nesse domingo, tudo fez sentido.

- Ela me despedaçou cantando "Eu sei que vou te amar"
- Nossa! Não sabia que vc gostava tanto dessa música
- Nem eu

O cenário era azul com desenhos que remetiam à vida marinha. Uma concha gigante aparecia iluminada em primeiro plano no palco. Ela, com um enorme vestido vermelho e coberta por um xale na mesma cor, era um coração discretamente pulsante no centro do palco. Arrebatador.

À medida que foi desfilando o repertório com sua voz delicada, Calcanhoto embalava a multidão sentada em transe. Muitos casais de moças e casais de opostos tinham sua hora mágica. Um show de romantismo ao extremo sem pieguice nenhuma. Me descobri completamente apaixonada, mas sem nenhum objeto.

a uma hora dessas
por onde passará seu pensamento

por dentro da minha saia

ou pelo firmamento?


Somente depois é que fui descobrir que as músicas que mais me tocaram, que mais falaram direto para mim, são justamente as presentes no seu mais novo trabalho, que está inteirinho lá, claro. Onde eu estava com a cabeça, meu deus? Ouço hoje o cd como quem ouve pela primeira vez. Ou pela segunda, logo após a Descoberta.

Adriana mostra que para ter um pleno domínio do público e do palco não é preciso ser um furacão enérgico. Com humor inteligente, sua simpatia comedida, que pode ser confundida com uma seriedade de timidez, contou causos do meio artístico e apresentou as novas músicas. Tudo isso lá, sentadinha no seu banco, sem alterar o tom de voz ou tirar o pé do chão. Linda como uma boneca russa.

amarrado num mastro
tapando as orelhas

eu resisti

ao encanto das sereias
eu não ouvi

o canto das sereias

E aí ela cantou também as músicas mais antigas, acompanhada pelo coro fiel de milhares de vozes, a quem ela enganava com uma interpretação de compasso ligeiramente diverso do registro original. Outra coisa que achei genial, porque pra mim um show é para você ouvir o artista - falando, explorando possibilidades na música, brincando com melodia e letra - caso contrário, melhor seria ficar em casa e escutar o cd ou mp3.

Esse show abriu uma janela em mim, provocou novidades e vontades. Pensei a sério sobre coisas que jamais imaginei que pudessem ser acordadas através de música, como partir da segurança da cidade que conheci a vida toda - e o inverno no leblon é quase glacial.

E mergulhei por completo na delícia das letras, que talvez pela primeira vez tenha decifrado, compreendido além da textura sonora, das ondas do rádio, do folhetim televisivo. Ali, átomo em meio à onda humana na Concha, desvelou-se uma identificação profunda, da qual até então tinha mera suspeita.