quinta-feira, novembro 15, 2007

A sessão de cinema mais bizarra de toda minha vida

Acabo de chegar dela. Fui ao Cinemark com uns amigos assistir ao filme Uma Mulher sob Influência (1974), de John Cassavetes, integrando uma mostra sobre o autor que está em cartaz aqui em Salvador. Filme cabeção a preço promocional (R$ 4 - inteira) não pod mesmo dar em boa coisa. Apesar de haver pouca gente na sala, parecia que todos os desavisados mal-educados da cidade tinham escolhido o mesmo ponto de encontro.



O filme é tenso o tempo todo, conta a história de um casal cuja mulher de meio "excêntrica" fica totalmente biruta e acaba indo passar uma temporada no manicômio. Antes disso, ela apronta umas poucas e boas com os três filhos pequenos, a família, o marido e seus colegas de trabalho estranhos. Mabel é a única louca de carteirinha na história, mas todos os outros personagens não ficam exatamente atrás. Paira um clima de agressividade no ar, as pessoas todas muito nervosas, como se todos estivessem à prestes a romper o fio da lucidez e ter algum ataque de ira. O ambiente do filme é familiar, de encontro entre amigos, mas é hostil como se fosse uma verdadeira guerra - aposto que há histórias diretamente do front que são mais tranquilas. Nada dá muito certo com ninguém, os personagens estão a todo momento necessitando relaxar e espairecer, mas existe sempre uma situação melindrosa, um constrangimento, como se a calma fosse proibida nesta narrativa.

Talvez, a cena mais emblemática disso é quando Nick (o marido) tira um dia para ir à praia com as crianças e um de seus amigos. Os homens andam rápido pela areia e conversam aos berros, o pai tange os filhos à procura de um lugar para se instalarem e é tão rude que chega a dar um safanão na garotinha, que a derruba no chão. Depois desse "divertido" dia de sol e banho de mar, eles voltam para casa no fundo de uma carretinha e o pai divide sua cerveja com sua prole, que não deve ter mais que 7 ou 8 anos.

Agora imagine um filme como este exibido para a nossa refinada platéia soteropolitana. Logo no começo da sessão, as pessoas conversavam entre si sem a menor desfaçatez. Não eram murmúrios ou um burburinho, dava para ouvir o que falavam. Fiz um "shhhhhhhh!" e o volume diminuiu, mas óbvio que não parou, porque estávamos cercados. Uma idiota atrás de nós começou a ler as legendas, que eram em português de Portugal, em voz alta. Uma outra lá na frente balançava um inacreditável chocalho de pulseiras que faria inveja ao Sinhozinho Malta. Para completar, o áudio do filme estava baixíssimo, o que tornava até sacos de pipoca verdadeiros trovões.

Felizmente não demorou muito para que boa parte deste povo se picasse do cinema, mas havia os mais renitentes. Outro "shhhhhhh!", dessa vez de Rodrigo. Houve ainda um terceiro, também em nosso grupo. Mesmo assim, rolou o clássico momento em que toca o celular - com um mp3 de reggae altíssimo - e obviamente a princesa atende para dizer "oi! te ligo depois, porque não posso atender agora. estou no cinema. isso, no cinema. hã? o que? não posso falar com você agora. tchau! depois eu te ligo. tchau!". Parece que o povo havia chegado à bilheteria dizendo assim: qual é o filme mais barato que vc tem aí? Porque é possível que alguém vá ao cinema sem nem saber do que se trata (como eu fui, inclusive), mas é difícil isso acontecer quando se trata de uma mostra seletiva. E que raio de popularidade massiva pode ter um título como "uma mulher sob influência"? Difícil de explicar.

Mas para ser a sessão mais bizarra de toda minha vida, ainda há outros elementos, é claro. Uma mulher levantou-se para ir embora e se espatifou na escada, fazendo um barulhão e provocando uma risadaria que parecia que não ia ter fim. Pouco depois, botando a cereja no bolo, a tela perde o enquadramento, ficando sem legendas e com um foco super esquisito, acentuando ainda mais o estranhamento causado pelo filme. Foram longos minutos assim, perdendo falas, até que se acenderam as luzes e a projeção foi interrompida para que ajeitassem as coisas.

Tive a nítida sensação de que tudo isso estava planejado como um programa de imersão especial para o filme. A tensão na tela era amplificada pela irritação fora dela, tornando a experiência completa e peculiar. O grau de transferência do clima de estar ao limite para a platéia não poderia ter sido melhor imaginado pelo diretor.

Enquanto assistia ao filme, queria logo que ele terminasse - até porque é bastante longo, passando de 2h de duração, e eu estava morta de fome - mas este é um daqueles que ficam latejando na memória da gente, com efeito prolongado. A agonia que ele provoca é proposital, na secura da falta de trilha sonora, com relações tratadas à pontas de faca. Gena Rowlands, no papel da despirocada Mabel está divina, com uma loucura constrangedora, irritante e que ao mesmo tempo desperta compaixão. Ela é absolutamente verossímil, reunindo características do que poderia ser uma personalidade forte com uma intensa fragilidade emocional, caras e bocas distorcidas, juntamente com gestos guiados por uma lógica incompreensível de alguém que tem um universo paralelo desconectado da realidade dentro da própria cabeça.

Livre da sala, que de enorme, elegante e confortável havia se transformado numa besta claustrofóbica com todos estes acontecimentos e o efeito provocado pelo filme, comecei a refletir sobre todos os temas tocados pela loucura de Mabel. Estão ali assuntos de família, de amor, de convenções sociais, de laços afetivos, relações entre pais e filhos, tratamento de enferminades mentais... É como se a obra fosse se sedimentando e do incômodo em estado bruto fosse lapidado um entendimento da complexidade e do êxito do trabalho de Cassavetes. Um soco, definitivamente.

É um filme instigante. Nada a ver com clima de feriado (mas excelente tê-lo visto hoje) e muito menos com cinema fast-food.

1 Comments:

At 4:56 PM, Blogger Cristiano said...

Que nada. Você está dizendo que essa seção foi bizarra porque não lembrou daquele filme da minhoca. Aquilo sim foi muito bizarro. Não tem platéia surreal que vença aquilo.

 

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