sexta-feira, maio 30, 2008

My heart belongs to daddy


A cidade permaneceu invisível por dezessete anos. O calçamento de paralelepípedos foi reconstruído num quebra-cabeça de histórias, tempos e sentimentos sem pouso nem morada. O casario começou a fazer sentido com as cores misturadas entre vibrantes e tons pastel, com bordados brancos de alvenaria e alguns pontos em gradil de demolição. As pessoas brotaram sem estranheza nas ruas, cruzando as vias em motos e bicicletas, sem olhar para o estrangeiro como curiosidade hostil.

Sol forte, fumaça de incenso de igreja. Uma fanfarra desafinando o hino nacional. Crianças, adultos, idosos, inválidos e dementes assistindo à procissão passar. Um modo diferente de ser, estar e lidar com o passar dos anos e do viço jovem. Ossos quase centenários retorcidos num recado de que toda carne nessa vida se vai. Eu olho com estranhamento estrangeiro.

O cortinado da noite desceu abafando a agitação dos transeuntes. Aguardo pela epifania na varanda. Ela se aproxima nos passos ligeiramente turvos de um homem que já carrega bastante idade sobre uma coluna arreada. Finalmente estou ao pé da montanha. Abraço, um beijo no rosto, uma frase de coração religioso. Sorrisos francos se abrem suturando uma fissura no tempo até tornar-se uma cicatriz indolor quase imperceptível. De laceração a um risco na pele em poucas horas tecidas de narrativas, contos e aconselhamentos dissolvidos em amenidades.

Rodamos pela cidade com uma lente do passado. Mais histórias e impressões. O momento não queria acabar, ele fazia estender o resgate e a palavra. Aquele homem poderia se tornar meu herói em um instante. Difícil admitir, entender, situar na trajetória dos fatos, mas o que havia ali, dentro da cabine da caminhonete, era amor. As lágrimas prenderam-se pelas pontas dos dedos na raiz dos meus cílios curtinhos.

Nos seus olhos oceanicamente verdes, pontos na íris me remetiam a possíveis explicações. Acreditei na iridologia e por um instante tentei adivinhar o que aqueles pontos pretos em meio à claridade queriam dizer. Estabeleci relações imaginárias entre aquelas marcas e suas palavras. Depreendi sua personalidade por suas leituras. Aceitei as justificativas que me foram oferecidas na espiral de um tacho de doce mexido com vontade para não perder o ponto. Amei-o em poucas horas, divididas em duas parcelas, enquanto deixávamos nossos caminhos escorrerem pelas coisas ditas, olhares cúmplices num gracejo, chamamentos familiares.

Tive vontade de tomar suas mãos grandes e cravejadas de dias, beijá-las, trocar em miúdos o que sentia. Guardei para não espantar o passarinho que ganhava confiança no comedouro à minha janela. Guardo para logo mais, sem temer a inexistência de um outro encontro. É nosso, ele sabe. Nossos olhos nos contaram.

1 Comments:

At 10:38 PM, Anonymous Anônimo said...

E no final, tudo floresceu!

 

Postar um comentário

<< Home