quinta-feira, setembro 07, 2006

monólogo de partida



Você parece que pega no ar quando estou decidida a ir embora. Do nada, vem com sua boca macia e palavras doces, agradecendo cada momento que passamos juntos e dizendo coisas para me fazer esquecer todas as dores que me amordaçaram até agora. Aqui onde estou, cresci bastante, é verdade. Porém, não posso deixar se dissiparem entre gratidões e esquecimentos todas as vezes que você insinuou que não sou nem a metade da mulher que você e eu gostaríamos que eu fosse. E a incerteza de estar ao seu lado porque você deseja ou se é apenas porque eu aguento? Todas as vezes essa história se repete. Basta um pedido de perdão com olhos arrependidos e, depois de deitar a cabeça no travesseiro, estou pronta para uma nova jornada de defeitos e insegurança. O que ganhei em troca, me pergunto. Sua vida apaixonante me devora inteira, mas também arrancou uma parte de minha alma. Meus pés no chão me transformaram numa burocrata de aparente pouca importância, mas que vira peça-chave sempre que arrumo minhas malas em direção à saída. Meu bem, de hoje em diante será diferente. Cada instante que não estiver ao seu lado, farei um esforço para me desprender deste laço. Sentirei dificuldade, eu sei, porque me acostumei demais com cada centímetro de esforço para alcançar este seu abraço lento e mordaz. Relaxei com a minha sopa de pedras, ração diária dessa nossa vida de dois desesperados. Vai ser melhor para você e para mim. Nenhum de nós precisa se agarrar a esta âncora, porque já estamos afundando. Hoje, você tem o pior de mim e eu de você, a quem mais queremos machucar? Larguemos de mão esta mina esgotada e partamos em outras aventuras, cada um escolha um dos braços desta estrada bifurcada. Que um dia nos encontremos por acaso, com trajes de gala em vermelho-rubi, em algum coquetel. Então poderemos sorrir, elegantes, com certa indiferença. OU então nos abraçarmos fortemente, desejando alcançar um fragmento de passado, com um amor inacabado e ameno, uma brasa amortecida pelo esquecimento de todos os espinhos do nosso traçado. Pense bem, se é isso mesmo que você quer, porque eu mesma não tolero mais. Mas não posso negar que fico lisonjeada com esta vida tortuosa que me oferece - uma emoção nova a cada dia, mesmo que seja limpar os restos de vômito da nossa bebedeira infame na última madrugada. Estou esgotada, amor. Confesso que continuar ao seu lado vai me inutilizar para qualquer outra vida e qualquer outro amante. Sua constante exigência apenas pelas minhas vísceras está desacostumando minha alma do calafrio das paixões e da montanha-russa das conquistas. Entre nós, é tudo plano. Você reage tão mal aos baixos, quanto aos altos. Sua constante insatisfação derrota a minha resistência, por isso transformei toda minha força de vontade em pura preguiça. Merecemos coisa melhor. E eu que cheguei a acreditar que você seria o ponto mais alto em toda minha história. Nas últimas horas da minha vida, o enxergava de mãos dadas comigo. E sei que você também admirou a minha bravura de enfrentá-lo sozinha. Encarar o desafio de entrar na sua vida com tanto verde no coração e durar o tempo que nenhuma outra ousou durar. Passei mais tempo e com menos exigências do que você esperava, não é mesmo? Por isso mesmo você acabou me fazendo pequenos agrados. Sou sua criada mais doce e submissa, o que você mais adora e o que mais lhe irrita. Às vezes você tira meu sangue e não derrubo uma só lágrima. Ou então eu lhe exploro na surdina, o convenço a pequenas degradações, achando justo por você ser um desalmado. No fim das contas, isso tudo me corrói. Se você viveu sempre assim e acha que está perfeito, compreendo. Mas eu tenho muito mais pela frente e minha cama eu arrumarei de outro jeito. Tenho alguns modos de menina fina que não combinam com os seus bancos de madeira rota. Não é dizendo agora que sou tudo o que você precisa para despertar a cada manhã que você vai me convencer permanecer esperando Godot. Todos os dias você acorda com os mesmos olhos vermelhos e incorrigíveis. Dou um basta. Ficará um pouco de mim em seu leito quando eu fechar as portas às minhas costas e sei que não há como sair recolhendo toda ponta de mágoa. Elas ficarão e sei que vão brotar. Por muito tempo, talvez. Um dia passa e nos encontraremos naquele coquetel. Inevitável encontro, porque já pusemos nossas vidas no mesmo fluxo - antes mesmo de percorrermos a mesma trilha. É hora de dizer adeus. Sairei por aí abanando meu leque para ver quem me oferece o preço mais justo. Seu lance não tem mais como ser o maior.

4 Comments:

At 10:02 AM, Anonymous Anônimo said...

Embora, tamanho não seja documento...

 
At 3:40 PM, Blogger danilo said...

O texto tá forte, doloroso, afiado. Quase incômodo, com muita carga emocional. Quem lê fica imaginando o que há de realidade em tudo isso. Um exercício muito interessante, tanto de escrita quanto de leitura. Bacana, gostei.

 
At 2:39 PM, Anonymous Anônimo said...

Já recebi uma carta assim certa vez, era esperada já. Demorou a vir, mas quando aconteceu, junto a ela chegou alívio e certezas. Devo me lembrar. Eu as coloquei guardadas dentro de um baú de fundo extenso e escuro, que só eu posso abrir. Muito bem lembrei desta carta no seu texto, parabéns. Beijos naquele lugar.

 
At 12:56 PM, Blogger Bobbie Ladyamnesia said...

Um texto assim faz qualque um acreditar que perdeu a pessoa da vida.

Deve doer ter essa consciência...

XXXOOO

ps.: vou linkar você ao palavradegirafa, ok?

 

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