segunda-feira, junho 09, 2008

História de cães (e certos desejos)


Sabe quando você quer muito uma coisa, avalia, planeja, vê quanto custa, pensa bem e quando parece que finalmente chegou o momento de possui-la, o destino resolve redistribuir as cartas e então você se encontra tão próximo do seu objetivo quanto o Titanic da superfície do Atlântico?

Cair das nuvens é pouco, em algumas situações.

Lembro de quando eu era criança, ainda nem tinha nove anos, e eu queria muito um cachorrinho. Muito mesmo. Tanto, que já havia até convencido minha mãe, que me deixava olhar diariamente os classificados do jornal à procura de filhotes. Já existia até um perfil traçado, com possíveis raças, idade em meses e preço. Meus olhinhos corriam pelas colunas de letras miúdas e espremidas à procura de cães de pequeno porte para um apartamento de dois quartos: pincher, poodle toy, pequinês. Eram as raças mais comuns por naqueles idos anos 80.

Sendo que os pincher são notoriamente conhecidos como histéricos; os poodles, quanto menor o porte, mais caro fica. O pequinês, contudo, já era uma tradição na minha família, uma raça querida de imediato. Houve duas ou três gerações de pequineses entre nós. O último deles eu cheguei a conhecer, morreu todo troncho de 17 anos de velhice quando eu tinha seis anos. Fofo, pequeno e com longevidade, o pequinês era, portanto, o cão ideal.

Certa feita, me deparei com um anúncio que parecia um verdadeiro sonho: Doamos cães pequineses. Fiquei eufórica, mostrei à minha mãe que, mesmo com cautela, ficou animada. Ligou para o anunciante para se certificar da oferta, sim, sim, era verdade. Tomou o endereço, combinou o horário e fomos num bairro meio distante buscar o cãozinho.

Eu não cabia em mim de contentamento. Minha mãe tentava pôr meus pés no chão, dizendo que precisávamos ver o animal direito, saber se os donos iriam se desfazer mesmo, etc. E eu só pensava na combinação de palavras que a Xuxa ensinava para as crianças na TV: QUERER, PODER E CONSEGUIR. Ela falava isso como um mantra, fazendo até uma coisinha com as mãos. Eu imitava o gesto enquanto o táxi comia léguas em direção ao meu futuro cãozinho.

Chegando na casa, fomos recebidas sem muita cerimônia e apresentadas à cadelinha que sobrou. Me pareceu meio grande e tinha um problema no olho. Disseram que ela tinha dois anos. Não era exatamente o que sonhávamos, mas resolvemos tentar. Levamos a bichinha para casa. Ainda no carro, afagando a cadela, senti um carocinho que me chamou atenção. O carocinho tinha pernas.

Na mesma tarde fomos ao veterinário ver se era possível resolver o problema do olho. Não era. Tratava-se de alguma laceração bizarra, inflamada e incurável. A cadela, de acordo com sua parca dentição, tinha pelo menos uns 7 anos, estava meio anêmica, tinha alguns problemas de pele e muitos, muitos carrapatos - eles caíam de tão cheios, recebiam o afago destinado à sua hospedeira.

Minha mãe não contou conversa. Falou francamente comigo que, naquelas condições, não podíamos acolher o animalzinho. Eu até que achei razoável, mas era realização da minha vontade indo por água abaixo. Não quis acompanhá-la na devolução e lembro de ter tentado usar litros de lágrimas e soluços como argumento. Chorei de ficar com o rosto vermelho e a cabeça pesada. Sem nenhum prazer, chegava ao meu conhecimento a Sra. Frustração.

Acontece que, quando a gente é pequeno, de juntas moles e células multiplicando aos borbotões, tudo que é ferida seca logo, junto com o choro e as dores. Acho que no dia seguinte eu já devia estar novamente com os dedinhos percorrendo os classificados de animais domésticos. Nem me lembro o nome da cachorrinha xexelenta, coitada.

O caldo entorna mesmo é quando a gente cresce, acha que já tem estrada suficiente para conhecer certas regras e se encher de precauções no carrinho do supermercado. Aí o choro fica meio empedrado de vergonha, engolido antes de brotar, aguando e enferrujando um monte de coisa doida dentro do peito. Dilui certos males e eles ficam correndo por dentro feito veneno, que deixa a gente enfezado, até que saia tudo na urina.

1 Comments:

At 3:15 PM, Anonymous Anônimo said...

Eu repito: estar machucada e ainda ter vergonha disso é sofrer duas vezes.
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Estou por perto...

 

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