segunda-feira, março 17, 2008

Aprendendo a só ser

Faz duas semanas tenho uma companheira de casa. Lilica mora comigo de sexta a domingo, quando volta a Salvador para curtir os louros de sua fortuna feita no capinzal com seus ofícios de doutora. Recém-formada, deu um grito de liberdade e, até que se mude para São Paulo, como todo o resto da patota, vai fazendo treinamento instalada num apartamento charmoso no bairro boêmio da Soterópolis.

A convivência cotidiana com uma pessoa está tendo seus impactos. Ambas estamos nos adaptando ao compartilhamento de espaços, tarefas, utensílios e a coexistência harmoniosa de nossos temperamentos. Escolhemos passar esse tempo dividindo o teto, não é como família, que o destino enfia goela abaixo. Portanto, o diálogo tem espaço para ser claro, aberto e preciso.

Estão acontecendo coisas muito engraçadas. Tem, obviamente, a minha estranheza por ter alguém mais aqui podendo mandar nas coisas em pé de igualdade. Eu, filha única, taurina, há mais de um ano morando sozinha numa casa minha-minha-minha. Mas tem as descobertas mútuas, a busca de soluções para a organização das coisas da rotina e a companhia.

Lilica é estudante de psiquiatria, pequena, elétrica, comilona e treinada para expressar sua raiva. Eu sou um elefante branco que pensa ser um bicho-preguiça. Ela pula da cama às 7 e vai me deixando dormir, até encontrar uma brecha em meio às minhas ressonadas matinais para me ejetar da cama.

Nesses dias de maior contato, ela me contou coisas inimagináveis sobre sua história e me mostrou tantas outras características que eu desconhecia. A mais curiosa delas é que Lilica tem um clown dentro de si. Tropeça, derruba as coisas, se atrapalha com tudo, esquece a chave do lado de fora da porta e sorri para começar tudo de novo, quase tranquila e feliz. Ao contrário de mim, que sempre solto um "disgraça!" ou exclamação mal-educada que o valha.

Lilica faz a linha fofa e discreta. Eu sou desbocada e uso roupas em que sempre sobra cor ou falta pano. Ela tem cabelo curto e liso. Eu cultivo uma selva de ondas e cachos. Ela faz dieta dos pontos. Eu como comida a peso e ando tomando shake dietético. Eu cozinho utilizando o microondas. Ela ficou fascinada com o resultado do arroz e do ovo frito sem gordura. Eu conto meus sonhos. Ela analisa. Eu senti uma dor na perna. Ela disse que era distensão muscular e me sugeriu anti-inflamatório. Ela acende as luzes de todos os cômodos por onde passa. Eu mando economizar energia. Ela tem um namorado em São Paulo. Eu sou excessivamente independente. Eu acho que ela está testando a evolução da minha terapia. Ela acha que a gente não deve dar tanta importância ao que os outros acham.

Quando a apresentei ao servente do prédio, ele perguntou se éramos irmãs. Deve ter sido pelos óculos de acetato - os dela são pretos e estreitos, os meus, brancos e enormes.

Com a chegada de Lilica, minha casa deu praticamente um ultimato com relação às coisas que eu pareço fazer questão de manter com aspecto de provisórias. Até hoje há caixas debaixo da minha cama. Até hoje não mandei pintar a estante de aço. Até hoje não há armário no banheiro e faltam outros móveis de guardar ou assentar as coisas. O resultado é meu quarto ter virado a caixa de Pandora. Parei abismada diante do monturo de coisas e não fazia idéia de por onde começar. Eu sempre acabo fazendo arrumações "cosméticas". Preciso me esforçar para que pelo menos as áreas de convivência fiquem em ordem - banheiro, cozinha, sala. Armários e prateleiras também me provaram sua serventia.

Com tão pouco dinheiro e tantos planos... Tão pouco tempo. E como tudo pertence ao tempo, tenho a certeza de que na hora em que eu pensar ter terminado, é momento de começar tudo de novo - reformas, reparos, novas roupagens, a constante reorganização.

A presença de Lilica - ainda que tão provisória quanto parece a minha casa - já está me dando muito material para pensar.

E se eu não enlouquecer, eu cresço.