quinta-feira, novembro 29, 2007

Cabaré da RRRRRaça


Figurino anterior - o atual é vermelho.
Clique de Márcio Lima, fotógrafo oficial do Vila


A peça é do Bando de Teatro Olodum - conhecido nacionalmente por causa do filme Ó Paí ó, também saído de um de seus espetáculos - e existe desde 1997, mas eu só fui vê-la em 2003, quando fui trabalhar no Teatro Vila Velha. Peguei o bonde andando, já era uma montagem nova, com outro figurino, mudanças no texto, etc. etc. Teatro tem dessas coisas. Rever uma peça é muito longe de pegar e re-assistir ao dvd do seu clássico predileto. É uma coisa viva e mutante, que fica diferente a cada nova sessão, sofre transformações a cada temporada. O conceito, no entanto, continuava e continua o mesmo: um retrato crítico do racismo no Brasil, carregado no humor irreverente.

Até ver Cabaré da RRRRRaça, nunca tinha me tocado de muitas coisas que eles escancaram ali no palco. Sem ingenuidade, há muitas práticas racistas profundamente arraigadas na cultura brasileira, mas muitas vezes a gente não se dá conta porque nada disso incomoda a mídia ou a sociedade feita para a população branca e dominante. Nunca havia batido de frente com certas questões porque simplesmente não convivia com aquelas pessoas. Que pessoas? Negras.

Apesar de não ser racista, nem vinda de uma família racista (apesar de um ou outro desvio aqui e ali), a sociedade em que vivemos é, sim, racista. Na minha escola particular, por exemplo, posso contar nos dedos - da mão do Lula - quantos colegas de classe eram negros, sendo que alguns deles eram bolsistas filhos de funcionários, uma concessão. Na faculdade (Federal pré-cotas), a mesma coisa. Isso é no mínimo um desequilíbrio, considerando que vivo na chamada maior cidade negra fora da África.

Homens, mulheres e crianças da raça negra, portanto, não faziam exatamente parte do meu círculo social. Estavam sempre como 'coadjuvantes', nos papéis serviçais, nos sub-empregos, na vassalagem, sutis atualizações da escravidão dita extinta há muito tempo. E nesse contexto, muitas idéias preconceituosas são apresentadas com naturalidade e somente quem sente na pele - e às vezes nem estes - pode saber do que está falando.

É exatamente essa dimensão que o Cabaré da RRRRRaça traz à tona. Os personagens olham nos olhos da platéia e dão a medida do absurdo que é viver imerso numa sociedade que não lhes reconhece e faz cara de paisagem a respeito disso. Através de vozes diversas, às vezes até mesmo contraditórias, como é próprio da natureza humana, a peça aponta verdades duras que precisam ser ouvidas por brancos e negros. Considero um trabalho fundamental para entendermos que Brasil é esse em que nós estamos.

O discurso de igualdade muitas vezes é hipócrita e não abarca questões fundamentais, esmagando algumas diferenças que são inerentes aos grupos. Há diferenças, sim, e reconhecê-las é parte do processo de inclusão. Diferenças que, longe de somar ou subtrair, são particularidades. São enormes diferenças históricas, diferenças culturais, estéticas, que precisam ser respeitadas, pois determinam reações, necessidades e soluções igualmente diferenciadas.

Por outro lado, o que é ser negro, afinal? Lembro de uma resposta que Marcio Meirelles dava às vezes em que o apontavam como o "diretor branco" do grupo: "O único branco do Bando é Zebrinha, que toma chá com leite".

Com o Cabaré, há dez anos o Bando de Teatro Olodum vem metendo o dedo numa ferida aberta no seio da sociedade brasileira, tão propalada como rica e miscigenada, dotada de uma exuberante cultura antropofágica e tropicalista por natureza. Da estréia, com a polêmica da 1/2 entrada para negros, muitas coisas mudaram: produtos de beleza para estética afro, cotas na educação, a primeira protagonista negra numa novela brasileira, racismo tornou-se crime, Lázaro Ramos (d0 mesmo Bando) é queridinho do cinema nacional e empresta o rosto a propagandas, inclusive de condomínio de luxo... Alguns diriam 'avanço', outros 'reparação', ou 'antes tarde do que nunca'.

Parece que finalmente há um movimento nos paradigmas. Felizmente! E acredito que o Cabaré da RRRRRaça, nascido aqui, na triste e dessemelhante Bahia, tem papel ativo nessa história.

Parabéns ao Bando de Teatro Olodum. Vida longa a seu poder!

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